Eu matei você



O que eu faria caso você se materializasse agora, bem aqui na minha frente? Com toda certeza eu te chamaria para entrar, te ofereceria cerveja e tomaria quinze minutos da sua vida para contar tudo o que aprendi esse tempo todo sem a sua ajuda.
Durante anos você foi um fantasma que me acompanhou em cada encontro com uma pessoa nova. Você puxava a cadeira de todos eles e dava uma rasteira em qualquer chance de ser superado por alguém. Sem saber e sem querer você foi meu pior pesadelo fantasiado de sonho. Comparar um simples mortal à você me fez matar gente demais. Ninguém te superaria. Ninguém alcançaria sua marca. Ninguém te ultrapassaria. Eu não deixava isso acontecer, porque me recusava a acordar desse coma que eu mesma me enfiei.
E agora, passada a sensação de soco no estômago, eu enxergo com a mesma nitidez de quem ganhou óculos novos. Eu vejo que você não é o homem que eu construí na minha cabeça e tampouco eu sou a mulher que o faria feliz. Talvez, em uma época remota e distante, fossemos a peça que faltava na vida um do outro. Hoje você é um completo estranho para mim e, acredite, você também não sabe mais nada a meu respeito. De amigo íntimo de todas as cores das minhas calcinhas, você passou a ser só um personagem de histórias antigas.
Se fossemos a um restaurante, aposto que você não saberia o que pedir para me agradar, e eu nem sei se você ainda come polvo. Não sei mais que número você veste, se fuma quando bebe, se adoça ou não o café, se acorda as sete ou as onze. Bem provavelmente acabaríamos mexendo no celular, empurrando goela abaixo uma cerveja quente e falando sobre o clima.
Não desprezo o que vivemos. Inclusive, é o que me conforta. Não estou anulando o quanto te amei e entenda, por favor, que isto nem está em questão. Se um dia alguém conseguir me amar tanto quanto você me amou, não tenho dúvidas de que os anos serão muito mais leves e menos intragáveis. E se, por ventura, eu não tiver essa sorte, já foi um grande prazer ter dividido um pouco da vida com você.
Mas o que eu vim fazer aqui hoje nada tem a ver com a qualidade e quantidade do que vivemos. Forcei sua materialização em carne e osso na minha cabeça só pra falar que te tirei do pedestal. Consegui, enfim, jogar a última pá de areia na nossa história. Eu enterrei você e todas as suas inalcançáveis qualidades. Deixei que te superassem e pasme! Não doeu.
Desculpe a falta de tato mas, matar você me fez viver imensamente mais.

P.s.: obrigada por não puxar a cadeira e não dar nenhuma rasteira dessa vez. 

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