Parte do que me faz forte

Quando eu era pequena, meu pai tinha uma verdureira (feirinha, sacolão) na garagem de casa. Ele tinha uma Kombi caindo aos pedaços, três filhas pra criar e uma mulher forte do lado dele. Às quatro ele estava de pé, pra ir ao CEASA. Eu, nessa época, tinha três ou quatro anos - minhas irmãs, dez e doze.  Sabe Deus como eu lembro do que vou falar aqui, mas poderia até falar sobre o cheiro das coisas.

Não sei bem se eu fui educada diferente das minhas irmãs ou se, desde pequena, eu já tinha essa personalidadezinha difícil de contrariar. Mas, a verdade, é que eu fui muito livre e, ao mesmo tempo, sabia que a liberdade tinha consequências. Lembro de um dia, quando meu pai chegou do trabalho pra almoçar, e eu não queria comer. Minha mãe dizia: "Ela não tem que querer. Vai almoçar, sim!" e o meu pai disse: "Se ela não quer comer, não come. Mas quando ela ficar com fome, vai comer um prato de comida" (dali a cinco minutos ou as 16h). Que loucura! Como isso ficou gravado na minha memória desse jeito?! Eu lembro das panelas na mesa, dos pratos com estampas diferentes, de tudo. E eu não comi.
Outro dia, também no almoço, perguntei pro meu pai o que tinha pra comer. Ele me pegou no colo, de barriga pra baixo, segurando pela barriga, e me "sobrevoou" sob a mesa. Dessa vez, eu sentei, e comi.

Nessa mesma casa - e na mesma época -, um amigo do meu pai que estava na verdureira decidiu, por qualquer motivo, que eu não deveria andar de motoca (triciclo da Bandeirantes, lembra?) naquele momento. Tirou-a de mim e colocou em cima da mesinha do tanque, e disse: "Não pode andar, a rodinha tá furada". A roda era de plástico e tinha um furo, provavelmente pra drenar água caso fosse o caso, ou sei lá pra quê. Eu sabia que aquilo não era roda de borracha, não iria furar e nem estourar. Fiquei olhando pra motoca uns dois minutos e, voltei pra verdureira. Cutuquei o cara e disse: "tu não tem vergonha de mentir pra uma criança, não? Pode pegando minha motoca que eu vou andar". Assim, insolente mesmo. Em outra ocasião, ele me mandou entrar em casa, porque vinha aí o Homem do Saco. Eu entrei, e falei pra minha mãe: "Eu sei que não existe Homem do Saco. Por que ele mentiu?"

Essa casa tinha um quintal grande atrás, com uma árvore nespereira bem grande. Um dia, aprendendo a fazer bolha com chiclete, perto dessa árvore, falei pra minha irmã que eu queria ser um menino. Os meninos eram tão mais livres! Eles podiam coisas que, a gente não. Eu não tinha interesse nenhum em pentear o cabelo das minhas amigas - minhas Barbies tinham cabelo chanel (consegue imaginar?) e as bonecas grandes tinham o rosto pintado de batom (a testa, a bochecha, a boca, tudo). Eu queria quebrar coisas, destruir, construir, me sujar. Queria quebrar um braço, se esse fosse mesmo o destino de quem subia naquela árvore. Pelo menos, eu subiria. Minha irmã, inocentemente, me disse que se eu falasse aquilo de novo, ela não iria mais me dar chiclete. Eu não falei nada, mas lembro como se fosse hoje o que eu pensei. "E qual é o problema de ser um menino? Não entendi." Na dúvida, fiquei quieta, porque naquela altura, um Ploc valia meu silêncio.

Na escola, com uns seis anos, o diretor entrou na sala e, pediu que os que precisassem de caderno, levantassem a mão. Era uma escola pública, muito humilde. No início de todo ano, a escola (através do Ministério da Educação), dava material aos alunos que precisassem. Eu não levantei a mão. O diretor, pra se certificar, me perguntou se eu precisava. Agradeci, falei que não, que o meu pai tinha comprado, já. Em casa, contei pra minha mãe. A primeira reação dela, foi me questionar. "Mas por que tu não pegou?" - eu amava material escolar. E eu respondi: "Porque eu já tenho, mãe. Não preciso de mais". Com vergonha, ela concordou. Outra vez, em um passeio da escola, os pais deram R$5 pros filhos fazerem um passeio no centro da cidade e, depois, escolherem algo pra comer na padaria. Quando chegou minha vez de escolher, eu falei que não queria. Chegando em casa, mais uma vez, contei pra dona Sandra. "Mas filha, a mãe pagou pra tu comer. Por que não comesse?". Eu não comi, porque sabia que teria em casa, no café da tarde, o mesmo que eu iria pedir na padaria. Então, acho que seria mais justo que o dinheiro fosse usado pra quem não iria ter essa chance de comer em casa pão doce com farofa, creme e Toddynho.

Com uns oito anos, eu pedi pra minha mãe uma caixinha de lápis de cor de 24 cores da Faber-Castell, que vendia na Dona Dira - lojinha que vendia de tudo, na nossa rua. Minha mãe disse que não tinha dinheiro naquele momento. Eu fui na Dira, perguntei se podia comprar e pagar aos poucos, com o dinheiro do lanche. Ela riu, pegou a caixinha de lápis, tirou um caderno da gaveta e disse que ia abrir uma conta pra mim. Voltei pra casa e disse pra minha mãe que eu tinha uma dívida, mas que eu ia pagar direitinho. Até eu acabar de pagar aquilo, só pensava nisso. Essa foi, então, minha primeira negociação, meu primeiro crédito.

Já adolescente, morando em outra casa e estudando no colégio onde fiz meus maiores amigos, entendi o valor de ser amiga da minha mãe. Um dia, à tarde, ela recebeu uma ligação em casa. Eu não estava. Aliás, acho que passava quase todas as tardes na escola, entre o ensaio de fanfarra dos meus amigos, conversas na biblioteca ou pura exposição da figura. No telefone, era a responsável da escola, avisando que eu estava beijando um menino na quadra. Diz minha mãe, que o tom era de fofoca e não de preocupação. Nove em cada dez mães da época, iriam resolver esse assunto assim que a filha chegasse em casa, com um sermão ou castigo. Minha mãe? Ela disse: "Obrigada por me avisar, mas você está insinuando que eu não saiba disso? Eu sei até o nome dele."

Hoje, na porta dos trinta, tenho defeitos irremediáveis, como todo ser humano. Erro todos os dias - um pouco mais, um pouco menos. Às vezes sou injusta, como todo mundo. Entro em contradição, faço menos do que podia fazer, me acomodo. Mas, colocando na balança, posso dormir em paz. E agradeço a todos os santos, por ter sido criada em um lar de amor e respeito. Por ter recebido valores tão fortes, tão concretos. O mundo inteiro deveria ter sido criado pela minha mãe. Se todo mundo deixasse o caderninho pra quem precisa mais, eu não precisaria nem estar escrevendo isso. Seria redundante. Se a sua vontade de comer um pão doce com creme e farofa não fosse maior do que o prazer de ver outra pessoa comendo, seria desnecessário falar disso. Mas, quem mais tem, mais quer. Quem mais tem, menos divide. Quem mais tem, mais reclama. A barriga está cheia, mas ainda não é o suficiente. Quem dera todo mundo fosse criança de novo.

Postagens mais visitadas