Verão de 93

Abri os olhos, estou na cama dos meus pais, deitada entre eles. É verão, então o circulador de ar Arno está ligado, discreto como uma hélice de avião. 

Mãe, já é de manhã. Tá na hora! 

Estamos nos anos 90, então não tem iPhone do lado da cama. Com um olho colado e o outro aberto, ela pergunta que horas são. 

Eu vou escorregando até a ponta da cama, dou um pulinho e corro pra cozinha. Temos um microondas novinho que ninguém tem - presente do meu avô moderníssimo que ofereceu pra minha mãe isso, ou uma TV com VHS embutido. Mulher visionária! O microondas era meu relógio, e já eram cinco da manhã. 

- Mãe (ela voltou a dormir). Mãe! São cinco horas. 

- Pelo amor de Deus, Catherine. É muito cedo!

Eu vou pra sala, assistir Pequenas Empresas & Grandes Negócios, ou Globo Rural, até a primeira desavisada - uma das minhas irmãs - levantar pra fazer xixi e eu a atacar, perguntando: já tais pronta? 


Minha mãe levanta da cama, com uma camisola meio rosa, meio pêssego, com as alças amarradas em um nó, porque eram muito compridas e -sempre- com uma Havaianas nos pés. Por dois minutos, no tempo dela, ela fica em silêncio. Pega o bule, a chaleira que apita enlouquecidamente quando ferve, coloca o pó no coador, e vai passando o café. No banheiro, meu pai se arruma para ir à padaria. Meu pai é um cara que, se tivesse data pro mundo acabar, ele seguiria a rotina dele, sem atropelos. Definitivamente não somos iguais, nisso.


O cheio do café vai acordando a quem falta, como no desenho do Pica-Pau, fazendo umas ondinhas de aroma até chegar ao nariz da pessoa.

Eu arrumo a mesa, coloco a Qualy, o “musse” de banana, a maionese, o açúcar. Eu e minha mãe bebemos em caneca. Meu pai e minhas irmãs, xícara e pires. 

Vou conferir se alguém ainda está se enrolando na cama. 

Meu pai volta da padaria com um saco de papel, com uns três pães doces e cinco salgados. Minha mãe diz, todo final de semana, a mesma frase: te empurraram pão velho, de novo. 

- Mãe, eu já vou me arrumar. Não quero comer.

- Vai já comer um pão com café senão tu vais desmaiar.

 

Num pulo, eu já tinha comido, já vestia um maiô, um short e uma camiseta. Eu não usava Havaianas. Usava uma Rider - aquelas de uma tira só. Nessa hora, minha mãe já estava autorizada pelo pão e pelo café a ser mais feliz e a, como eu, estar ansiosa. 

De repente, como se fosse uma música e minha mãe um maestro, as pessoas vão fazendo o que ela manda e todos vão ficando prontos. A mochila de uma das minhas irmãs sempre já estava pronta, no pé da cama. Enquanto a outra, ouvindo qualquer coisa no walkman, ainda empurrava alguma roupa numa mochila Company. 

Meu pai organiza o isopor, encaixa umas cervejas, água e refrigerante - afinal é sábado, dia de Coca-Cola. Minha mãe, já com uma bolsa de viagem num ombro, bolsa no outro e com as chaves na mão:

- Todo mundo pronto? Pegou a bóia? E tu, pegou toalha? Então tá. 


Vamos todos para o ponto de ônibus. Sentamos nos fundos, onde a família cabe toda, um ao lado do outro. Eu faço mil perguntas sobre o que está escrito ali, o que significa isso aqui. E aquilo lá? 

Mais um ônibus e chegamos ao destino. Uma sede de verão, da empresa onde meu pai trabalhava. Lá estavam amigos dos anos anteriores e a família completa dos melhores amigos dos meus pais - nossa quase família, até hoje. 


Foi em um desses feriados de final de ano que eu me joguei em uma piscina sem bóia, quase morri afogada, fui salva, aprendi a nadar (ou só a não morrer), enfiei uma farpa no pé, fiquei tão bronzeada que não parecia irmã das minhas irmãs e bebia, como se não fosse segunda-feira, dois litros de refrigerante. 

A vida nos anos 90 era um luxo que dinheiro nenhum, hoje, nos daria acesso. A felicidade morava na ansiedade de um sábado de manhã e numa piscina que eu nem dava pé. 

Postagens mais visitadas